Diásporas Africanas

Diásporas Africanas

As trocas econômicas, culturais e midiáticas globais resultaram em aproximações inusitadas entre grupos humanos distantes como também inseriram novos processos de territorialização e distinção – alterando as próprias formas de conceber identidades sociais em contextos de reorganização do poder (Canclini, 2006). Percebe-se com isto que a referência à África em sua generalidade, institui expressões de africanidades diversas – de modo a realçar sua condição heterogênea, difusa e des-territorializada frente aos processos de homogeneização e mundialização da cultura (Ortiz, 2005).

Referências auto-identitárias postas em contato ativam diversos fluxos de significados interligados, transmutando os próprios sentidos de “aqui” e “lá” dos africanos e seus descendentes em diversas partes do mundo. Exílios traumáticos e histórias desfeitas pela escravidão em convergência com interesses que se expressam na consciência individual descentralizada e multifocada, noção referenciada como “dupla consciência” em W.E.B. Du Bois; processos coletivos, através de mobilizações políticas que integram e atravessam as fronteiras das nações-estados, metaforizada no “Atlântico Negro” de Paul Gilroy; processos de libertação colonial – inserem novas imagens e interpretações a estes processos identitários, consolidando o que vem sendo identificado como o contexto das múltiplas identidades (Hall, 1996: 70). A idéia de “diáspora”, mais comumente associada exclusivamente a deslocamento forçado, vitimização, alienação e perdas, passa então a ser incorporada nos discursos nativos ativando imagens e narrativas que identificam as produções visuais a partir de sua relação com a África, (ou mesmo de sua negação). Almejam concebê-la desde suas diferenças em relação às demais, portanto, introduzindo novas noções de fronteirasO termo diáspora negra, em foco nas discussões sobre pós-colonialismo, visa correlacionar as narrativas e conexões de sentido que integram experiências dos africanos e seus descendentes em diversas partes do mundo, seja para onde foram levados no passado como escravos ou ainda, na atualidade, decorrentes da descolonização; ou ainda, pelos imperativos da migração em busca de trabalho, refúgio, repatriação ou viagem.

 

Angola: caracterização e formação

Marino Leopoldo Sungo
Antropólogo, prof. Universidade Eduardo dos Santos, pesquisador do Instituto Kadila

Angola é um país pertencente ao continente africano, localizado na região Austral deste. É composta por 18 províncias e tem uma superfície de 1.246.700 km². O mesmo passou por uma dura e sangrenta colonização, imposta pelo Império Colonial Português, num período de mais de 500 anos.

O quadro que a seguir apresentamos espelha algumas datas ou períodos que de certo marcaram e marcam a história de Angola:

Data ACONTECIMENTO
1482 Os portugueses escalavam o território angolano, no estuário do rio Congo.
1576 Ano em que o Império Colonial Português expulsou o Império Holandês do território angolano.
1953 Fundação do 1° Partido Político em Angola com o nome de Partido Comunista de Angola (PCA).
1956 Elementos do PCA e outras organizações como o MINA, MIA, MLA, MLN uniram-se dando origem ao Partido de Luta Unida dos Estados Africanos de Angola (PLUA)
10/12/1956 O PLUA, aliando-se ao Movimento para a Independência de Angola (MIA), e a militantes comunistas funda o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Porém, é importante que se diga que esta versão não é aceita por todos os fundadores… é uma situação bastante controversa. Porém, esta é a versão oficial do próprio MPLA.
1957 Fundação da União das Populações do Norte de Angola (UPNA), que viria a se transformar em União das Populações do Norte (UPA).
1962 Fundação do Partido Democrático de Angola (PDA).
Março de 1962 A UPA e o PDA fundem-se na Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA).
Junho de 1964 Jonas Malheiro Savimbi, às vestes de Ministro dos Negócios Estrangeiros do GRAE, abandonou a FNLA e funda a UNITA (União Nacional para Independência Total de Angola). Movimento que dois anos depois, isto é, em 1966, viria a dar início à luta armada na região Leste, ao Sul do caminho de ferro de Benguela.
4/02/1961 Início da Luta de Libertação Nacional que se prolongou até 1974.
10/01/1975 a 15/01/1975 Aconteceram os Acordos de Alvor.
11/11/1975 Proclamação da Independência Nacional, em plena Guerra Civil, opondo os 3 movimentos de libertação: MPLA, UNITA e FNLA com a participação de forças estrangeiras, nomeadamente as do Zaire, África do Sul, Rússia e Cuba. De fato, o período de transição para a independência de Angola foi marcado por fricções ideológicas entre os 3 movimentos que viriam a dar origem a ações armadas com vista à tomada do poder.

Face a esta situação crítica, os três movimentos nacionalistas comprometeram-se a cooperar para a paz e preservar a integridade territorial de Angola, para facilitar a reconciliação nacional. Para tanto, foram celebrados vários acordos. Em 1976, as Nações Unidas reconheceram o governo do MPLA como legítimo representante de Angola. Em 10/9/1979, em Moscou, o fundador da nação angolana, o Dr. António Agostinho Neto, foi sucedido pelo então responsável pela planificação, o Engenheiro José Eduardo dos Santos, figura que ocupou o cargo de Presidente da República. Em 11/05/1991, o governo angolano publicou uma lei que autoriza a criação de novos partidos, pondo desta forma fim ao Regime Monopartidário. Em 30/05/1991, com a mediação de Portugal, EUA, União Soviética e da ONU, celebraram-se os Acordos de Bicesse (Estoril), terminando assim com a Guerra Civil, marcando as eleições para o ano seguinte, isto é, Setembro de 1992, que viriam a dar vitória ao MPLA. A UNITA não reconheceu os resultados e desencadeou uma grande revolta que culminou com o reinício do conflito armado. De 1993 a 20 de 11 de 1994 celebrou-se o Protocolo de Lusaka (na Zâmbia), entre a UNITA e o MPLA. Quase dois anos de negociações para a sua elaboração e 4 para a sua frustrada aplicação. Em dezembro de 1998, Angola retornou ao estado de Guerra Aberta, que viria a terminar em 2002 com a morte do líder da UNITA, o Dr. Jonas Malheiro Savimbi. Em 30/03/2002, com a morte do líder da UNITA (22/02/2002), as partes beligerantes assinaram o Memorando de Entendimento na parte Leste de Angola, isto é, no Lwena (Moxico). Neste ato, foram figuras de destaque o General Nunda da parte do Governo (MPLA) e o General Abreu “Kamorteiro” da parte da UNITA. E alguns dias depois assinou-se o Memorando Complementar.

04/04/2002 – Fim da Guerra Civil, ou seja, Cerimônia de assinatura da paz no Palácio dos Congressos (Luanda), assinado pelas chefias militares, nomeadamente: General Armando da Cruz Neto, então chefe do Estado Maior das FAA, e General Abreu “Kamorteiro”, chefe do Estado Maior da UNITA.

Angola é um país independente hoje, mas para que isso se tornasse um fato, muitos bateram-se em prol disto. Foi assim que, reagindo à invasão, os sobas e os reinos dominados iniciaram uma série de revoltas. As mais importantes revoltas ocorreram no sobado da Kisama, e no sobado dos Dembos, que protegiam grupos de escravos fugitivos, do Ndongo, da Matamba, do Kongo, de Kasanje, do Kuvale e do Planalto Central. Das pequenas revoltas, que foram apagadas na história dos vencedores, algumas permaneceram como testemunho da resistência, mostrando que as revoltas nunca cessaram na extensa capitania de Paulo Dias Novais. Eis algumas destas resistências e seus mentores:

1ª – A Revolta de 1570: foi liderada pelo carismático “Bula Matadi”, um aristocrata que, vendo o perigo que corria o seu povo, fez uma guerra de resistência para que não fossem explorados e dominados pelos portugueses. Bula Matadi mobilizou toda a comunidade para expulsar os portugueses do reino do Kongo, com a perspectiva de acabar com as intrigas que enfraqueciam o reino. O governo português interveio militarmente ao lado do rei do Kongo, e depois de muitas batalhas, Bula Matadi foi morto no último combate.

2ª – Resistência no Ndongo: No reino do Ndongo, foi forte a resistência contra a chegada de Portugal. Com o espírito aventureiro, Paulo Dias de Novais procurou o Ngola a fim de se informar das riquezas que havia no Ndongo. Desconfiado das intenções de Novais, não lhe facilitou seu desejo e teve-o preso em Kabasa durante cinco anos. Quando libertou o capitão português, ele regressou ao seu país e voltou alguns anos depois com homens armados, dispostos a fazer a guerra ao Ndongo, a partir da cidade de Luanda, onde se instalou e mandou construir uma fortaleza.

Ngola Kilwanje era então o rei do Ndongo. O seu exército conseguiu vencer os portugueses em várias batalhas, embora as armas fossem simples arcos e flechas contra as armas de fogo que os invasores traziam.

Contudo, a resistência enfraqueceu à medida que alguns chefes foram abandonando a luta e, quando Ngola Kilwanje morreu, o Ndongo foi aos poucos ocupado pelos agressores. Muxima, Massangano e Kambambe foram caindo na posse dos portugueses, que construíram fortes nos pontos altos a fim de melhor vigiar e dominar as populações. Algumas tribos e chefes sujeitaram-se a esta situação e pagaram tributos em escravos aos capitães portugueses. Outros preferiam fugir das áreas ocupadas e continuar a lutar, refugiando-se em zonas protegidas, como as ilhas do Kwanza.

3ª – Njinga Mbandi: O maior símbolo da resistência ficou para a Rainha Njinga Mbandi, que além da luta contra a ameaça do colonizador, conseguiu aliar os povos do Ndongo, Matamba, Kongo, Kasanje, Dembos, Kissama e do Planalto Central. Foi essa a maior aliança que se constituiu para lutar contra os portugueses. As diferenças e interesses regionais foram esquecidos a favor da unidade contra o inimigo comum. Esta unidade teve os seus efeitos positivos: durante vários anos, os portugueses perderam posições e foram reduzidos a um pequeno território de onde seriam expulsos se não recebessem reforços.

“Desejando restabelecer a paz com o Governador, depois de exaustivas lutas, a nova rainha mandou a Luanda (principal base dos portugueses) uma embaixada, que alcançou os seus objetivos, mediante a intervenção por ela solicitada. De figuras eclesiásticas de realce, entre as quais o bispo, propôs-se em 6 de setembro de 1683 o tratado de vassalagem, que obedeceu a oito condições, estipuladas pelo Governador e aceitas pelos protetores da soberania”. Fato que na íntegra forçou a rainha a dar abertura em suas terras para os forasteiros e caçadores de escravos: “Será a mesma rainha obrigada a mandar abrir os caminhos para o comércio, sem impedimento algum, franquear nas terras do seu estado, e para que os pumbeiros pudessem ir e vir livremente, sem que ela ou vassalo seu algum lhes pudessem impedir, antes lhe mandaram fazer toda a boa passagem e tratamento para que, sem dilacões, fizessem os resgates a quem foram encaminhados.” (Delgado, 1955:72).

O termo pumbeiros é o mesmo que pombeiros: agentes na sua maioria formados por mestiços. Os pombeiros trabalhavam com conta dos grandes chefes, sobas ou militares portugueses. Durante um ou dois anos, internavam-se no interior de Angola, trocavam os escravos por tecidos, vinho e objetos de quinquilharias, voltando com uma centena de negros, homens e mulheres acorrentadas. Este tráfico tinha o nome de “Guerra Preta” porque arrancavam sempre por meios violentos os negros das aldeias. Contudo, eram os próprios negros, entre os quais os Jingas, que, levados pela ambição de possuir os objetos trazidos pelos portugueses, faziam guerra aos seus irmãos de cor. Existia até uma moeda especial para pagar os escravos. Em determinada altura, foi uma espécie de conchinha, importada do Brasil, a que deram o nome de Jimbo. Mais tarde, um tecido de folhas de palmeiras, o “pano”, substituiu o Jimbo. Muitas vezes os auxiliares da “guerra preta” eram os próprios chefes negros, os Sobas, que trocavam os seus súditos por vinho, tecidos, sal ou pólvora. Os portugueses forneciam auxiliares a estes sobas: um dos seus soldados servia igualmente de guarda e ordenança. Como constatamos neste documento do século XVII, o comércio, a espionagem e a evangelização sempre foram armas imprescindíveis na conquista colonial. Há quem pretenda que as razões econômicas estão na base da infiltração portuguesa na África, mas nesse período histórico todas as formas para subordinação foram utilizadas com estratégias traçadas e coordenadas a partir das principais falhas das futuras colônias, principalmente na composição étnica do território angolano. Os acordos de vassalagem foram extremamente desiguais na composição do reino do Sonso, Quacar, Puriamujinga, Lindi, Cassem e Damba, pois a passagem dos pombeiros teve a garantia do governo central, cabendo aos vassalos, sobas e toda a comunidade originária de Angola aceitar as condições acordadas na base da imposição militar. Na revolta da Rainha Njinga Mbandi, apesar da sua percepção para uma possível unificação étnica na luta contra o colonizador, a questão da força bélica Lusa foi um fator decisivo. No entanto, passados vários séculos da morte da Rainha Njinga, a ideia da unidade do povo angolano ainda não configurou-se. Nos fins do século XX, vencida a luta contra o colonizador, permanecem as disputas internas pelo poder, com ideologias marcadas pelo rancor dos diferentes grupos étnicos na contramão da história.

4º – EKWIKWI II do Bailundo. Ekwikwi II foi outro herói da resistência, que reinou no Bailundo no planalto Central de Angola há cerca de 100 anos, com influência notável em toda a região. Quando chegou ao poder, os portugueses já dominavam todo o norte de Angola e preparavam para a penetração no interior do Planalto Central em busca de cera, borracha e outros produtos. Nessas circunstâncias, Ekwikwi resolveu preparar o seu povo militar e economicamente para enfrentar a guerra prevista. Sendo assim, ele intensificou a agricultura, principalmente o cultivo do milho, dieta indispensável na cultura do seu povo. O milho era enviado em caravanas para o litoral na base de troca com os sobados vizinhos. As caravanas do Bailundo, com o passar do tempo, passaram a avançar para outros estados. Com essas viagens, foram expandindo para as novas áreas da borracha e colmeias, tornando o reino do Bailundo conhecido em toda a África Central como o estado mais rico do planalto, com vários produtos para o consumo interno e exportação. A comunidade do Bailundo viveu intensamente os modelos para a defesa dos direitos e soberania dos estados do planalto, baseados nos princípios de Ekwikwi II que, além de fortalecer o seu exército, estabeleceu uma aliança sólida com Ndunaduma I, rei do Bié, para fortalecer sua posição na região. Ekwikwi II foi um rei progressista, dinâmico que sempre governou ao lado do seu povo. Ele foi sucedido por Numa II, que, corajosamente, enfrentou a guerra contra a pesada artilharia portuguesa no ataque à capital do Bailundo. Aos poucos as forças militares portuguesas foram ocupando pontos estratégicos. O Bailundo foi totalmente dominado, sem qualquer resistência à nova imposição Lusitana.

5º – Mutu-Ya-Kevela. Em 1902, os portugueses já tinham o domínio e a ocupação de grande parte do território angolano. Na região do planalto houve a fixação de alguns comerciantes portugueses em busca de milho, cera e borracha. Havia também fortificações construídas em Huambo e Bié para apoiar as trocas comerciais e manter a ocupação na região. Mesmo em pleno século XX, os portugueses mantinham o recrutamento para trabalho escravo na agricultura. Mutu-Ya-Kevela, o segundo homem mais importante na região, após o rei Kalandula do Bailundo, questionou as autoridades portuguesas contra o trabalho forçado imposto pelos imperialistas. Mutu-Ya-Kevela reuniu todos os sobados e reinos do planalto, convocando 6000 homens contra as colunas militares portuguesas, que sufocaram os rebeldes de Angola em 1902.

6º – Mandume, Rei dos Kwanyama. O sul de Angola esteve sempre disputado pelos portugueses e alemães. Aproveitando tal rivalidade, Mandume, rei do Kwanyama, conseguiu obter armamentos dos alemães, que serviriam para lutar contra os portugueses. Preocupados com uma futura ocupação dos alemães, os portugueses atacaram Njiva de surpresa, antes que ele organizasse a luta armada. Mandume fugiu, iniciando em todo o território Ambó uma tentativa de unir todas as tribos contra os portugueses. Os Ambós, muito bem organizados e comandados por Mandume, venceram os portugueses numa série de batalhas, obrigando os militares lusitanos a buscar reforços. Os portugueses utilizaram um sistema que ambos conheciam muito bem: corromperam parte da guerrilha Kwanyama e assim venceram as batalhas de Mongwa e Mufilo. Sabendo da vitória dos portugueses, devido ao grande poder de artilharia e à traição de alguns sobas, Mandume suicidou-se em 1917, preferindo a morte a viver sob a subordinação do colonialismo.

Bibliografia

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ZENGO, Zakeu A e VAN-DÚNEN, José Octávio Serra. Angola: caminhos e perspectivas para o progresso cultural e econômico sustentável, Rio de Janeiro, Hp

 

Mapas, cartografias e fronteiras

Simoni Mendes de Paula

Historiadora, doutoranda em História pela UFSC, pesquisadora do Kadila

José Nilo Bezerra Diniz

Historiador, doutorando em História pela UFSC, pesquisador do Kadila

Desde o século XVIII, o reino de Portugal, através de seu Secretário de Estado da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, passou a empreender uma série de levantamentos cartográficos de suas possessões ultramarinas, no intuito de investigar e conhecer seus territórios – inclusive a África meridional – e como estes contribuíam para o aumento da Real Fazenda. Dentre os planos de Sousa Coutinho reservados à África meridional, merece especial atenção seu desejo de unir as duas principais possessões portuguesas na costa Índica e atlântica da África, a saber, Moçambique e Angola. O programa de Dom Rodrigo de Sousa Coutinho tinha origem nas ideias do diplomata português Dom Luís da Cunha, que elaborara, juntamente com o geógrafo francês D’Anville, um plano de travessia continental. A concretização do plano traria três benefícios ao Império português ao mesmo tempo: impediria o avanço dos colonos flamengos instalados no Cabo, pouparia os navios lusos da perigosa travessia marítima do Cabo da Boa Esperança e reorientaria o comércio de ouro e marfim que abundava na hinterlândia para a costa atlântica.

Foi nesse contexto que se deram as primeiras produções cartográficas do que hoje compreende o território sul de Angola. Os primeiros mapas produzidos, no entanto, demonstram a falta de conhecimentos diretos da região em questão. O mapa abaixo, produzido por D’Anville em 1725, representa o que se sabia da região em meados do século XVIII. Nele, estão apontados os principais centros de poder africanos, seus caminhos e os postos portugueses, sobretudo espalhados pela costa. Do sul, as poucas marcações que se pode observar são algumas sinuosidades e marcos geográficos litorâneos, como Cabo Negro. Assim, os espaços incompletos no mapa cresciam à medida que se seguia para o sul e para o interior. A fronteira do território investigado pelos europeus é o rio Cunene, também denominado no mapa de “Grande rio”.


O motivo da ausência de informações além do Cunene era a carência de relatos descritivos de viajantes, missionários, comerciantes e outros exploradores pela região, o que era imprescindível para a geografia iluminista, que se pautava na compilação desses relatos. Apesar do desconhecimento, o território próximo ao rio Cunene era estratégico para os desígnios portugueses, pois se pensava que o leito desse rio seria a melhor forma de conectar as possessões portuguesas na costa atlântica e Índica. Além disso, planejava-se traçar uma rota comercial ligando-o ao rio Cuanza, que corria paralelamente mais ao norte.

Foi nesse sentido que, em 1785, o então governador-geral de Angola, Barão de Moçâmedes, destacou uma missão exploratória com o objetivo de demarcar a foz do rio Cunene e investigar as possibilidades de penetrar no interior através dessa linha fluvial. De acordo com as instruções escritas pelo Barão de Moçâmedes em 20 de maio de 1785, destinadas à tropa expedicionária, era necessário seguir a corrente principal do rio, ignorando as ribeiras e riachos que corresse para o norte, até que se encontrasse a foz do rio.

Em suas cartas, o Barão de Moçâmedes expõe sua opinião acerca da pertinência dos caminhos fluviais. Comenta a inutilidade e até o dispêndio de construir e manter uma rede de fortes e feiras no interior da África sem uma malha hídrica e ligação marítima que possa incrementar o comércio no sul de Angola. A expedição, chefiada pelo então capitão de granadeiros, Antônio José da Costa, contou com a participação do naturalista luso-brasileiro Joaquim José da Silva e Pinheiro Furtado, mas não conseguiu a interiorização esperada e teve seus trabalhos concluídos em 1787.

O mapa abaixo foi produzido por Pinheiro Furtado em 1786 com base em suas anotações e observações durante as missões de 1785-87 e talvez seja a primeira representação cartográfica do território Ovambo de que se tem notícia. Embora o espaço africano esteja representado a partir de instrumentos cognitivos europeus e sejam devedores de uma visão eurocêntrica, os mapas fornecem informações acerca da organização social-espacial dos poderes africanos. Neste caso, o mapa de Pinheiro Furtado apresenta a distribuição dos Ovambo em um período anterior à organização dos reinos do Cuamato e Cuanhama. Além disso, circunscreve o território de habitação deles e aponta, por meio de uma legenda preconceituosa que diz “povos bárbaros de vida vagabunda e pastoral”, a principal atividade dos grupos do além-Cunene.


Quase um século depois dessas missões além da margem esquerda do rio Cunene, o processo de investigação e exploração do território foi bruscamente acelerado pela disputa geográfico-diplomática impulsionada pela chamada “Partilha da África”. Temendo a perda de territórios por eles reivindicados, alguns setores da sociedade portuguesa adeptos do projeto colonial incentivaram a criação de expedições cartográficas aos territórios do interior da África Austral e Central. É nesse novo contexto que os militares Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens são destacados pela Sociedade de Geografia de Lisboa para investigar a hinterlândia e realizar uma Carta Geral de Angola. O interesse dos geógrafos pelo sul de Angola focava nas vastas zonas desconhecidas entre os rios Cubango (Okavango) e Cunene e nas relações deste com o curso do rio Coroca. Durante a viagem, Capelo e Ivens elaboraram importantes cartas geodésicas da região sul. Estas diferiam dos mapas do século XVIII pelo nível de detalhes e precisão, fruto da formulação pela observação in loco e não mais através de descrições textuais do espaço.


A carta acima mostra em detalhes a região que se estendia desde o centro urbano de Moçâmedes, no litoral, até os reinos do Humbe e Cuanhama, no interior. A intenção da carta foi apresentar a divisão e disposição dos principais grupos e os aspectos físicos do território, sobretudo no que se referia ao relevo e cursos d’água. Informações a esta carta de pequena escala, depois foram acrescidas por mapas militares de grande escala, que mostravam com maior precisão os detalhes do terreno, indicando as principais libatas e embalas (sedes e fortificações africanas), os pontos de água em um território semiárido, os caminhos indígenas, etc.

Durante os anos que sucederam a década de 1890, vieram a somar aos esforços portugueses de exploração algumas expedições alemãs, haja vista a criação da colônia da África do Sudoeste Alemã em 1884. Entre 1899 e 1900, foi enviada ao sul de Angola uma expedição chefiada por Pieter van Kellen e Hugo Baum. Ela fora organizada sob os auspícios do Comitê Econômico Colonial em Berlim, em associação com a Companhia de Mossamedes (Paris) e a South West-Africa Company (Londres) e pretendia observar o valor econômico das regiões no sul de Angola.

Quando, enfim, toda a região do sul de Angola se tornou conhecida pelos europeus e, consequentemente, registrada em material cartográfico, teve início a tão discutida demarcação da fronteira entre Angola e o Sudoeste Africano (atual Namíbia). Naquele momento, em meio ao colonialismo europeu no território africano, Angola ficou definida como colônia portuguesa, enquanto o Sudoeste Africano se transformou em um protetorado alemão. Mas qual era a verdadeira fronteira entre as duas colônias?

O primeiro acordo firmado entre o governo português e o Império Alemão, conhecido por Convenção Luso-Alemã, de 30 de dezembro de 1886, definiu que a fronteira deveria se iniciar na foz do rio Cunene, estendendo-se até a região das cataratas da serra do Caná, e de lá seguiria o paralelo até o rio Cubango. Este acordo feria o entendimento do governo português que considerava o paralelo do Cabo Frio como a real fronteira entre as duas colônias e não a foz do rio Cunene, o que significava uma extensão de 111 km de diferença. Com a nova definição, parte da região da Ovambolândia até então entendida integralmente como área de influência portuguesa, ficaria fora de seus domínios.

As cataratas da serra do Caná, que mais tarde passaram a figurar na documentação com o nome de Ruacaná, estão sempre presentes no debate acerca da fronteira. Na sequência, observa-se uma imagem registrada na virada do século XIX para o século XX da tão discutida catarata. Registro fotográfico feito pelo 1º Tenente Filippe de Carvalho.


Embora contra a sua vontade, os representantes do governo português aceitaram os termos do acordo; no entanto, os debates não cessaram. A questão se arrastou após a virada do século. A real localização da catarata no curso do Cunene à qual a Convenção luso-alemã se referia alimentou a discórdia. Enquanto o governo português alegava que a catarata em questão era a de Ruacaná, o império alemão defendia que a localização seria os rápidos de Nuangari, cerca de 200 quilômetros acima da serra de Caná.

No mapa abaixo, observamos os traçados correspondentes aos dois paralelos discutidos até então. O primeiro traçado se refere à posição alemã, enquanto o traçado inferior sinaliza a fronteira defendida pelo governo português.


O impasse acarretou na definição de um novo acordo em 1911. Neste novo cenário, haveria uma faixa de 11 quilômetros de largura desde o Cuangar até Chimenha, entre o Cunene e o Cubango, a qual se adotaria um regime de neutralidade. O local ficava exatamente entre os dois pontos do Cunene discutidos por ambos os Estados. Era o nascimento da controversa zona neutra; assim, a partir daquele ano, haveria um espaço entre as duas colônias no qual nenhum dos dois lados possuiria soberania.

No mapa a seguir, a zona neutra cortando a Ovambolândia.


A troca de soberania no território do Sudoeste Africano após o fim da Primeira Guerra Mundial acirrou ainda mais as disputas, agora protagonizadas pelo governo português e pelos governos britânico e sul-africano (responsáveis pelo ex-protetorado alemão). Em 1920, uma missão portuguesa se encontrou com uma missão inglesa, representada por sul-africanos e chefiada pelo engenheiro hidrógrafo Mr. Kanthack, junto à catarata do Ruacaná. Os delegados dos dois países fronteiriços deram início aos trabalhos preliminares de demarcação de uma fronteira definitiva.

No entanto, definir uma fronteira não era o único interesse de ambos os grupos. O lado sul da fronteira, marcado pelo deserto namibiano, era um empecilho natural para a fixação de europeus na região, que não se adaptavam à terra seca. Nesse cenário, as famosas cataratas do Ruacaná se mostravam como a solução para o problema, através de um audacioso projeto assinado pelo engenheiro alemão Schwarz. A ideia do engenheiro era desviar parte das águas do rio Cunene para o sul, a fim de provocar a inundação do lago Etosha, localizado em meio ao deserto do Kalahari, e assim alterar o sistema de cheias da região.

O projeto em questão não foi executado, porém os debates em torno da fronteira litigiosa tiveram fim em 1926, quando na África do Sul, o governo português e o governo da União Sul-Africana assinaram um acordo na Conferência do Cabo. O acordo em questão delimitou a fronteira em definitivo, dando-lhe a divisão política que perdura até hoje (conforme mapa a seguir). Além disso, criaram-se as leis que deveriam regulamentar os usos das águas do rio Cunene, com o propósito de sanar os problemas hidráulicos de ambos os lados da fronteira.


Bibliografia

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(Artigo elaborado para o Projeto Kadila, disponível para uso didático; pede-se citar a fonte)

Refúgios e Deslocamentos

Entre mares: refugiados “angolanos” em Itajaí/SC

Charles Raimundo

Historiador, Mestre e doutor pelo PPGAS UFSC, pesquisador do NUER.

Este texto apresenta, de forma sucinta, uma experiência etnográfica que traz reflexões sobre identidades processuais em diaspóra. No referido processo, a história/trajetória de famílias “angolanas”, em sua maioria ligadas à indústria da pesca no litoral sul de Angola – Baía Farta/Benguela – traça as rotas deste ensaio. Vale mencionar que, sob a alcunha de “angolanos/as”, encontram-se relações entre nacionalidades cabo-verdianas, angolanas, portuguesas e brasileiras.

Como num roteiro de cinema, essas famílias entram em barcos pesqueiros do patrão português e lançam-se por mares nunca navegados, rumo ao Brasil. Em sua Ilíada localizada nas migrações contemporâneas (refugiados ambientais, econômicos, políticos, belicosos), atravessam o Atlântico. E, como me disseram, enquanto o patrão queria salvar seus barcos, eles fugiram para salvar a vida.

O cenário é o início da guerra civil angolana, 1976 – 2001 – nesse contexto, encontramos a conversão das guerras coloniais, ou seja, diferentes frentes de libertação do domínio português (Tali, 2001) e o momento da independência do regime colonial português, em que uma das facções recebe o governo das mãos portuguesas – MPLA, frente de viés marxista –, colocando outras frentes em disputa pelo poder – FNLA e UNITA.

Quanto aos “angolanos/as” residentes em Itajaí/SC, esse é um momento de ambiguidades. A fuga de Angola acontece na independência. Essa mesma data direciona sua celebração anual, a festa da independência de Angola. Em outras palavras, marca sua identidade e sua fuga. Ampliando o contexto, encontramos um Brasil com contradições nesse sentido. Em plena ditadura militar e sua caça aos comunistas, o Brasil tenta se aproximar de Angola independente, fortalecendo assim uma política externa voltada para a África (Dávila, 2010).

No dia 5 de novembro de 1975, oitenta e quatro pessoas, entre adultos e crianças, cruzaram o Atlântico, deslizando por águas onde outrora navios negreiros faziam suas rotas no contexto escravista. Cinco embarcações de pesca levantaram âncoras após a invasão da UNITA, uma das frentes de libertação que disputavam o poder no pós-colônia. Em busca de “águas mais tranquilas”, esses personagens seguiram para a Namíbia (5 dias) e, em seguida, para a margem de cá (19 dias), rumo à sua nova “casa”. Esses indivíduos deram início a uma nova forma de viver, com certeza diversa da que estavam habituados. Outras autoras já haviam apontado que novas angolanidades compõem a foz do Itajaí (Paredes & Alencar, 2009); porém, após realizar uma etnografia com esse grupo, acredito que estamos tratando também de novas afro-brasilidades e novas africanidades, menos marcadas pela diáspora forçada da escravidão e menos marcadas pelo pertencimento nacional, mas sim perpassadas pela ideia de construção de uma nova África contemporânea.

Existe nessa perspectiva um processo de identidades de grupo e de pessoa (Mauss, 2003), formuladas de forma processual. Identidades, pois tiveram de marcar, brigar em diferentes momentos de sua vivência no Brasil, para conseguirem documentos que facilitassem seu trânsito por aqui, e para isso correram atrás de suas identidades “oficiais” – outras nem tanto – para, no momento presente, traçar, através de identificações e diferenças, seu lugar na cidade. Para que tal fenômeno, o das identidades múltiplas e diferenciações, fique plausível, utilizo como argumento as falas coletadas em campo e a teoria pesquisada, sublinhando aspectos desses personagens como necessidades adquiridas, trabalho, adaptação, moradia, cidade, identidades “oficiais”, o contexto da família na diáspora, auto-declarações e conceitos combinados. Ideias que nos ajudarão a captar o momento vivido por “angolanos/as” na cidade de Itajaí e suas relações com esta nos últimos trinta anos.

Dentro deste propósito, considero a memória como peça-chave para entender o processo que me proponho a analisar. A construção dessa memória é perpassada por diferentes momentos e estímulos. A memória, encarada de forma coletiva, constitui-se na somatória das diferentes pessoas deste grupo, aproximando-se ao que Richard Price apresenta como percepção da memória/tempo, evocando a imagem de um velho acordeão, que se abre ou se fecha, encolhendo algumas coisas, aumentando outras e, neste processo, fazendo música (Price, 2000).

Aqui, gostaria de atentar para a pessoa inserida na cidade adotiva, relacionando-se com os citadinos, sentimentos e instituições que envolvem sua esfera de trabalho, estudos e lazer. Desta forma, não podemos encarar o morador da cidade como solitário, no sentido de viver apenas consigo mesmo, mas articulado com um contexto de vida social circundante, onde, de diferentes maneiras, conflituosas ou não, projeta-se no espaço público e privado.

A operação dos estereótipos é outro ponto interessante revelado nessas falas, que apresentam angolanos/as assim como brasileiros/as de forma preconceituosa ou essencializada. Dentro da perspectiva de propagação, como uma onda no mar, trazemos experiências que vão se modificando conforme o tempo/espaço percorrido. Trazemos conosco, impresso em nossa pessoa, uma série de marcas (não só físicas) que vêm a ser significadas conforme a ocasião. A escola e o trabalho foram os primeiros espaços formais de coexistência entre brasileiros/as e angolanos/as em solo catarinense, e, pela fala dos entrevistados, houve uma resistência inicial em aceitar esses jovens, crianças e adultos em seus quadros escolares e postos de trabalho, exigindo deste coletivo angolano uma “corrida” por direitos junto às autoridades locais. Adaptar-se ao novo país, inserir-se na cultura local através do processo de escolarização, trabalho e o lugar de onde falam na cidade, aliado a um sentimento de perda, gerava sentimentos contraditórios.

Para tanto, a criação de uma associação que viabilizasse e facilitasse uma melhor mobilidade e cidadania no Brasil foi uma das estratégias para conseguirem direitos junto ao governo brasileiro e angolano.


Vale a pena considerar que o refugiado africano, haitiano ou latino-americano assume características perante a mídia bem diferentes dos imigrantes europeus. Os jornais vangloriam-se da mão de obra vinda do continente europeu e “lançam fogueira” sobre refugiados climáticos e econômicos dos países vizinhos.

Com isso, a obra contribui para os estudos que alinham etnografia, migrações (em geral) e africanas (em específico), além das identidades em diáspora. Em Remando no mesmo bote, os interlocutores desse trabalho são parceiros intelectuais e agentes de sua história.

O leitor não pode perder de vista a contribuição científica deste trabalho, principalmente no que se refere à atualidade do assunto. O Brasil recebe, nos últimos anos, levas consideráveis de haitianos, bolivianos e africanos, entre outros. Deslocamentos humanos (por diferentes motivos), que buscam mercados de trabalho, constituindo mão de obra, seja na indústria civil, frigorífica ou informal, ativando diferentes sentimentos, principalmente por parte dos brasileiros. Isso apenas para citar o caso do Brasil, sem recorrer às inúmeras manchetes de revistas e redes sociais sobre situações migratórias e seus contextos entre África/Europa e América Latina/EUA. Só para exemplificar os mais conhecidos.

Entretanto, essas situações exigem posicionamentos e ações por parte dos governos, da sociedade civil e das associações de apoio, referindo-se a políticas públicas que visam a alteridade dentro do Estado-nação contemporâneo. Essas chaves conceituais ajudam a entender os fenômenos e a trocar experiências.


Entre mares: refugiados “angolanos” em Itajaí/SC

Charles Raimundo

Historiador, Mestre e doutor pelo PPGAS UFSC, pesquisador do NUER.

Este texto apresenta, de forma sucinta, uma experiência etnográfica que traz reflexões sobre identidades processuais em diaspóra. No referido processo, a história/trajetória de famílias “angolanas”, em sua maioria ligadas à indústria da pesca no litoral sul de Angola – Baía Farta/Benguela – traça as rotas deste ensaio. Vale mencionar que, sob a alcunha de “angolanos/as”, encontram-se relações entre nacionalidades cabo-verdianas, angolanas, portuguesas e brasileiras.

Como num roteiro de cinema, essas famílias entram em barcos pesqueiros do patrão português e lançam-se por mares nunca navegados, rumo ao Brasil. Em sua Ilíada localizada nas migrações contemporâneas (refugiados ambientais, econômicos, políticos, belicosos), atravessam o Atlântico. E, como me disseram, enquanto o patrão queria salvar seus barcos, eles fugiram para salvar a vida.

O cenário é o início da guerra civil angolana, 1976 – 2001 – nesse contexto, encontramos a conversão das guerras coloniais, ou seja, diferentes frentes de libertação do domínio português (Tali, 2001) e o momento da independência do regime colonial português, em que uma das facções recebe o governo das mãos portuguesas – MPLA, frente de viés marxista –, colocando outras frentes em disputa pelo poder – FNLA e UNITA.

Quanto aos “angolanos/as” residentes em Itajaí/SC, esse é um momento de ambiguidades. A fuga de Angola acontece na independência. Essa mesma data direciona sua celebração anual, a festa da independência de Angola. Em outras palavras, marca sua identidade e sua fuga. Ampliando o contexto, encontramos um Brasil com contradições nesse sentido. Em plena ditadura militar e sua caça aos comunistas, o Brasil tenta se aproximar de Angola independente, fortalecendo assim uma política externa voltada para a África (Dávila, 2010).

No dia 5 de novembro de 1975, oitenta e quatro pessoas, entre adultos e crianças, cruzaram o Atlântico, deslizando por águas onde outrora navios negreiros faziam suas rotas no contexto escravista. Cinco embarcações de pesca levantaram âncoras após a invasão da UNITA, uma das frentes de libertação que disputavam o poder no pós-colônia. Em busca de “águas mais tranquilas”, esses personagens seguiram para a Namíbia (5 dias) e, em seguida, para a margem de cá (19 dias), rumo à sua nova “casa”. Esses indivíduos deram início a uma nova forma de viver, com certeza diversa da que estavam habituados. Outras autoras já haviam apontado que novas angolanidades compõem a foz do Itajaí (Paredes & Alencar, 2009); porém, após realizar uma etnografia com esse grupo, acredito que estamos tratando também de novas afro-brasilidades e novas africanidades, menos marcadas pela diáspora forçada da escravidão e menos marcadas pelo pertencimento nacional, mas sim perpassadas pela ideia de construção de uma nova África contemporânea.

Existe nessa perspectiva um processo de identidades de grupo e de pessoa (Mauss, 2003), formuladas de forma processual. Identidades, pois tiveram de marcar, brigar em diferentes momentos de sua vivência no Brasil, para conseguirem documentos que facilitassem seu trânsito por aqui, e para isso correram atrás de suas identidades “oficiais” – outras nem tanto – para, no momento presente, traçar, através de identificações e diferenças, seu lugar na cidade. Para que tal fenômeno, o das identidades múltiplas e diferenciações, fique plausível, utilizo como argumento as falas coletadas em campo e a teoria pesquisada, sublinhando aspectos desses personagens como necessidades adquiridas, trabalho, adaptação, moradia, cidade, identidades “oficiais”, o contexto da família na diáspora, auto-declarações e conceitos combinados. Ideias que nos ajudarão a captar o momento vivido por “angolanos/as” na cidade de Itajaí e suas relações com esta nos últimos trinta anos.

Dentro deste propósito, considero a memória como peça-chave para entender o processo que me proponho a analisar. A construção dessa memória é perpassada por diferentes momentos e estímulos. A memória, encarada de forma coletiva, constitui-se na somatória das diferentes pessoas deste grupo, aproximando-se ao que Richard Price apresenta como percepção da memória/tempo, evocando a imagem de um velho acordeão, que se abre ou se fecha, encolhendo algumas coisas, aumentando outras e, neste processo, fazendo música (Price, 2000).

Aqui, gostaria de atentar para a pessoa inserida na cidade adotiva, relacionando-se com os citadinos, sentimentos e instituições que envolvem sua esfera de trabalho, estudos e lazer. Desta forma, não podemos encarar o morador da cidade como solitário, no sentido de viver apenas consigo mesmo, mas articulado com um contexto de vida social circundante, onde, de diferentes maneiras, conflituosas ou não, projeta-se no espaço público e privado.

A operação dos estereótipos é outro ponto interessante revelado nessas falas, que apresentam angolanos/as assim como brasileiros/as de forma preconceituosa ou essencializada. Dentro da perspectiva de propagação, como uma onda no mar, trazemos experiências que vão se modificando conforme o tempo/espaço percorrido. Trazemos conosco, impresso em nossa pessoa, uma série de marcas (não só físicas) que vêm a ser significadas conforme a ocasião. A escola e o trabalho foram os primeiros espaços formais de coexistência entre brasileiros/as e angolanos/as em solo catarinense, e, pela fala dos entrevistados, houve uma resistência inicial em aceitar esses jovens, crianças e adultos em seus quadros escolares e postos de trabalho, exigindo deste coletivo angolano uma “corrida” por direitos junto às autoridades locais. Adaptar-se ao novo país, inserir-se na cultura local através do processo de escolarização, trabalho e o lugar de onde falam na cidade, aliado a um sentimento de perda, gerava sentimentos contraditórios.

Para tanto, a criação de uma associação que viabilizasse e facilitasse uma melhor mobilidade e cidadania no Brasil foi uma das estratégias para conseguirem direitos junto ao governo brasileiro e angolano.


Vale a pena considerar que o refugiado africano, haitiano ou latino-americano assume características perante a mídia bem diferentes dos imigrantes europeus. Os jornais vangloriam-se da mão de obra vinda do continente europeu e “lançam fogueira” sobre refugiados climáticos e econômicos dos países vizinhos.

Com isso, a obra contribui para os estudos que alinham etnografia, migrações (em geral) e africanas (em específico), além das identidades em diáspora. Em Remando no mesmo bote, os interlocutores desse trabalho são parceiros intelectuais e agentes de sua história.

O leitor não pode perder de vista a contribuição científica deste trabalho, principalmente no que se refere à atualidade do assunto. O Brasil recebe, nos últimos anos, levas consideráveis de haitianos, bolivianos e africanos, entre outros. Deslocamentos humanos (por diferentes motivos), que buscam mercados de trabalho, constituindo mão de obra, seja na indústria civil, frigorífica ou informal, ativando diferentes sentimentos, principalmente por parte dos brasileiros. Isso apenas para citar o caso do Brasil, sem recorrer às inúmeras manchetes de revistas e redes sociais sobre situações migratórias e seus contextos entre África/Europa e América Latina/EUA. Só para exemplificar os mais conhecidos.

Entretanto, essas situações exigem posicionamentos e ações por parte dos governos, da sociedade civil e das associações de apoio, referindo-se a políticas públicas que visam a alteridade dentro do Estado-nação contemporâneo. Essas chaves conceituais ajudam a entender os fenômenos e a trocar experiências.


Referências Bibliográficas:

ALENCAR, Alexandra & PAREDES, Margarida. Novas angolanidades no Vale do Itajaí. In: Revista África 21. Dezembro de 2008.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe & STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. Ed. Brasiliense, 1985.

_______. Cultura com aspas. Cosac Naify, 2009.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. São Paulo: Editora 34, 2001.

MBEMBE, Achille. As formas africanas da escrita de si. Publicado em: http://www.artafrica.info/html/artigotrimestre/artigo.php?id=21#nota1

PRICE, Richard. Memória, Modernidade, Martinica. Revista Ilha v. 2, n. 1 (2000).

RAIMUNDO, Charles. Remando no mesmo bote: a experiência diaspórica de refugiados “angolanos/as” em Itajaí/SC e seus desdobramentos identitários. Dissertação, UFSC, 2013.

TALI, Jean-Michel Mabeko. Dissidências e poder de Estado: o MPLA perante si próprio (1962-1977). Ensaio de história política (1° vol. 1962-1974 e 2° vol. 1974 – 1977). Coleção Ensaio-3. Luanda, 2001.

Texto extraído da Dissertação de Mestrado “Remando no mesmo bote: a experiência diaspórica de angolanos e angolanas refugiados/as em Itajaí/SC e seus desdobramentos identitários”, defendida no PPGAS/UFSC, 2013, sob orientação da Profa. Dra. Ilka Boaventura Leite.

Guerras, Resistências e Lutas Libertárias

Arranjos da Branquitude no Brasil: entre a ambivalência da mestiçagem e o fortalecimento da cultura brasileira

Willian Luiz da Conceição

Historiador, Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (MN/UFRJ). Mestre em Antropologia Social pela UFSC, pesquisador do Núcleo de Estudos de Identidades e Relações Interétnicas – NUER.

A problemática deste trabalho de Mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC) é a continuação de uma pesquisa iniciada em 2014, com o objetivo de estudar o papel da branquitude nas relações raciais no Brasil, e se alinha a um campo recente de estudos interdisciplinares sobre a branquitude.

 A problemática da brancura aparece devido à inexistência do elemento branco como fator importante da constituição das barreiras raciais e sociais no país. Os recentes estudos da branquitude partem da crítica social e acadêmica de que a ausência e invisibilidade da branquitude nos estudos históricos, antropológicos, sociológicos e literários é uma maneira de afastar o branco da sua responsabilidade como grupo étnico.

A produção de conhecimento na área das Ciências Humanas tem, em grande medida, se destacado nos estudos sobre a negritude e o negro problema, o que conduz, na minha opinião, a uma visão monolítica das hierarquias raciais constitutivas do racismo estrutural (ONU, 2014) que segrega e vitimiza parte significativa da população brasileira, cerca de 52%. Em contrapartida, a problemática da branquitude questiona o negro exclusivamente como objeto racializado a ser dissecado em um mecanismo de conhecimento que reiterou persistentemente que as desigualdades raciais e sociais constituem um problema unicamente do negro e de sua incapacidade de superar as barreiras da vida social brasileira (BENTO, 2002), diminuindo a intervenção do branco nas relações raciais.

O reconhecimento do racismo institucional no Brasil é recente. Durante muitos anos e ainda hoje, um mito nos assombra: o mito de uma falsa democracia racial. A ideologia da mestiçagem como identidade assumida pelo Estado-Nacional desde 1930 buscou, durante anos, afirmar que o Brasil era o país da integração entre os grupos étnicos e se utilizou da ampla gradação étnico-racial existente para atestar a não existência do racismo. O modelo de integração racial brasileiro foi fortemente exportado; todavia, fundamenta-se em uma falácia de base ideológica. O ideal de mestiçagem mostrou-se como ideologia, e em si mesma carrega um princípio anti mestiçagem, em que predomina um projeto político historicamente assentado no desejo de branqueamento da nação.

O que evidenciamos se articula como fenômeno racial de hierarquização social, econômica e também estética com base na brancura como valor quase intransponível, estabelecido em “um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros, e a si mesmo, em uma posição de poder, em uma geografia social de raça, e como lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo” (FRANKENBERG apud PIZA, 2002: 71; FRANKENBERG, 1999b: 43-51; 2004: 307-338).

Para Alberto Guerreiro Ramos, no “Brasil, o branco tem desfrutado do privilégio de ver o negro, sem por este último ser visto. Nossa sociologia do negro até agora tem sido uma ilustração desse privilégio” (Ramos, 1995[1957]: 202). Este privilégio de ver sem ser visto, contribuindo para uma sociologia do negro, estabeleceu, segundo Dyer, o branco como grupo em norma, e os demais não brancos como desvios desta norma, “como se fosse a maneira natural, inevitável e comum de sermos humanos” (DYER, 1988, p. 44).

O conceito de branquitude foi entendido como a identidade étnico-racial atribuída ao branco e que se estende a toda a sociedade; entretanto, isso não significa que a identidade branca seja fixa ou una, ela carrega ambivalências, é constantemente mutável e, no caso do Brasil, possui uma negação retórica ou silenciamento, o que é compreendido muitas vezes como sua inexistência. É importante compreender o silêncio da branquitude como algo a ser interpretado; nem sempre o ato de silenciar guarda o vazio, o nada. Ao calarmo-nos, podemos estar afirmando muitas coisas; o silêncio carrega uma linguagem, esta pode conter informações privilegiadas do mundo, basta que possamos investigá-lo de forma intensificada. Maurice Merleau-Ponty ao afirmar que a “linguagem diz peremptoriamente, mesmo quando renuncia a dizer a coisa mesma” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 144).

O livro de Lia Vainer Schucman, intitulado Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo, baseado na sua tese de 2012 na Universidade de São Paulo – USP, partiu de entrevistas com brancos na cidade de São Paulo, estes advindos de diferentes classes sociais, gênero e gerações, com o objetivo de compreender os significados que estes sujeitos atribuíam ao “ser branco”. Os resultados dos trabalhos de Schucman apontaram que o racismo se assenta na ideia de raça construída ainda no século XIX, persistindo seu eco nos comportamentos e na subjetivação de indivíduos brancos. A pesquisa concluiu que estes sujeitos acreditam que “ser branco” determina fortemente características morais, intelectuais e estéticas (SCHUCMAN, 2014).

Em meu trabalho de conclusão do curso em História na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, intitulado OS ARRANJOS DA BRANQUITUDE EM JORGE AMADO – entre a ambivalência da mestiçagem e o fortalecimento da cultura brasileira, busquei analisar a obra Tenda dos Milagres (1968) de Jorge Amado, através do conceito da branquitude. O trabalho constou da análise das características dos personagens negros, mestiços e brancos, numa obra que Jorge Amado declarou como seu romance-tese sobre a mestiçagem e cujo protagonista é um “mulato” (Pedro Archanjo). A problemática apareceu quando o homem branco (James Levenson), mesmo não sendo protagonista declarado, é o elemento central e referencial da narrativa, sobressaindo a branquitude como elemento estrutural da obra.

Por conseguinte, nosso objetivo neste trabalho é compreender a branquitude como categoria conceitual para a análise das relações raciais no Brasil. A partir disso, refletir sobre a bibliografia produzida principalmente nos Estados Unidos (onde a branquitude tem sido estudada há muitos anos), articulando o conceito e a problemática a partir da realidade brasileira, problematizando-a enquanto fenômeno a ser estudado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENTO, M. A. & CARONE, I. (Orgs.). Psicologia social do racismo. São Paulo: Vozes, 2002.

BENTO, M. A. S. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.

DYER, R. White. London and New York: Routledge, 1988.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Signes. Paris: Gallimard, 1960.

PIZA, E. Porta de vidro: uma entrada para branquitude. In: CARONE, I. & BENTO (Orgs.), Psicologia Social do racismo: Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 59-90). Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

RAMOS, A. G. A introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Andes, 1957.

SCHUCMAN, Lia. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo.

SOVIK, L. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2009.

Texto extraído do Projeto de dissertação de Mestrado a ser defendido no PPGAS/UFSC, orientado pela profa. Ilka Boaventura Leite.

 

 

Construindo o movimento: um estudo sobre o processo de mobilização do MOQUIBOM e ACONERUQ no Maranhão

Igor Thiago Silva de Sousa

Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2022), mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (2016) e graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Maranhão (2013). Membro do Núcleo de Estudos de Identidades e Relações Interétnicas – NUER.

As mobilizações de quilombolas no Maranhão têm atraído a atenção quanto às suas pautas e organização política. Essas mobilizações ocorrem majoritariamente através de duas instâncias desse segmento: a ACONERUQ (Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e o MOQUIBOM (Movimento Quilombola do Maranhão). Essas formas organizativas possuem histórias e posições políticas próprias, que, em muitos casos, divergem entre si, levando a conflitos públicos sobre as estratégias a serem adotadas e as formas de encaminhar demandas ao Estado.

A ACONERUQ é uma representação dos quilombolas no Maranhão, associada ao processo de organização do movimento negro no estado desde a década de 1970, com o surgimento do CCN/MA (Centro de Cultura Negra). A partir desse movimento, começaram a ser realizados estudos sobre comunidades quilombolas no estado, destacando a documentação de memórias do pós-escravidão e práticas socioculturais.

O projeto de Maria Raimunda Araújo, conhecido como Mundinha Araújo, teve um papel fundamental nesse contexto. Embora não tenha conseguido continuidade sistemática devido à falta de recursos, seu esforço levou ao surgimento do Projeto Vida de Negro (PVN), que se tornou um marco na luta pelos direitos territoriais das comunidades quilombolas.

Já na década de 1990, o CCN/MA começou a disseminar os direitos constitucionais no Maranhão, destacando a importância do artigo 68 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). O movimento culminou na criação da ACONERUQ após o V Encontro das Comunidades Negras Rurais, com o objetivo de representar as demandas quilombolas perante o governo.

Por outro lado, a partir de 2002, surgiram denúncias relacionadas à gestão da ACONERUQ, que resultaram na fundação do MOQUIBOM em 2011. Este movimento priorizou a luta pela titulação territorial, buscando diferenciar-se das abordagens tradicionais e formalmente existentes.

O MOQUIBOM centra suas ações em ocupações de órgãos públicos e protestos, enfatizando a necessidade de assegurar os direitos territoriais previstos na Constituição. A articulação entre as comunidades e o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) destacam a importância da mística da terra e a mobilização social.

Neste contexto, torna-se essencial compreender as dinâmicas de atuação entre o MOQUIBOM e a ACONERUQ, suas estratégias de luta e as tensões que permeiam suas relações. As fronteiras sociais e étnicas desempenham um papel crucial na configuração dessas mobilizações, revelando as complexidades das identidades e a luta por reconhecimento e direitos.

A pesquisa proposta visa mapear essas articulações políticas e sociais, destacando as diferenças e semelhanças entre os grupos, além de compreender como as categorias de pertencimento influenciam suas lutas e reivindicações.

Referências

  • BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, P., STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Unesp, 2011.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.
  • COHEN, Anthony P. The symbolic construction of community. Londres: Routledge, 1985.
  • FABIANI, Adelmir. Os quilombos contemporâneos maranhenses e a luta pela terra. Estudios Históricos, Uruguai, v. 2, 2009.
  • FURTADO, Marivânia Leonor Souza. Aquilombamento no Maranhão: um Rio Grande de (im)possibilidades. 2012. 313 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em geografia, Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente, 2012.
  • PROJETO VIDA DE NEGRO. Vida de negro no Maranhão: uma experiência de luta, organização e resistência nos territórios quilombolas. Coleção Negro Cosme, v. 4. São Luís: SMDH, CNN-MA, PVN, 2005.
  • SILVA, Dimas Salustiano. Constituição e diferença étnica: o problema das comunidades negras remanescentes de quilombo no Brasil. In: Regulamentação de terras de negro no Brasil. Boletim informativo do NUER, v. 1, n. 1, Florianópolis, 1997. Brasília, 1988.
  • SILVA, Ivo Fonseca. Depoimento [Novembro. 2013]. Entrevistador: SOUSA, Igor Thiago Silva de. Entrevista concedida para elaboração de monografia apresentada no curso de Ciências Sociais na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) em 2014.
  • COSTA, Almirandir Madeira. Depoimento [Maio. 2012]. Entrevistador: SOUSA, Igor Thiago Silva de. Entrevista concedida para elaboração de monografia apresentada no curso de Ciências Sociais na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) em 2014.

Texto extraído do Projeto de Dissertação de Mestrado que foi defendida no PPGAS/UFSC em sob orientação dos professores Ilka Boaventura Leite e Theophilos Rifiotis.

Olhares de África

Ilka Boaventura Leite

Profa. de Antropologia da UFSC, coordenadora do NUER e do Instituto Kadila

Artistas visuais são inegáveis mediadores/as e deslocam-se entre discursos epistemológicos, linguagens e códigos estéticos e visuais. Revelam, através de suas obras, uma parte significativa dos sujeitos contemporâneos, seus mundos, encontros e desencontros.

O projeto como percurso de viagem iniciou-se em 1997 em Chicago, conversando com artistas muralistas, e continuou nos meses de outubro e novembro de 2006 em Lisboa, onde conheci e conversei com artistas portugueses e moçambicanos que vivem nesta cidade e imediações.

 Após identificar e mapear um conjunto de aspectos sobre a chamada “arte africana, reconheci-a como uma fronteira no campo das representações sobre a Arte. Em fins de janeiro de 2007, passei a residir em Lisboa, iniciando aí o trabalho de campo propriamente dito do projeto “Olhares de África”, desenvolvido através de bolsa de pós-doutorado sênior da CAPES. Neste mesmo ano, desloquei-me para Maputo, seguindo duas permanências em 2007 e 2009. Em 2008, iniciei as viagens pelo Brasil – Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro – com apoio do CNPq. Em 2013 e 2014, fui a Angola, Luanda e Namibe, e por último, a Buenos Aires, em 2015.

A diáspora africana, sob este aspecto, integra lugares e expressões de vidas que não se encontram hoje refletidas nos horizontes habituais. Portanto, é importante percebê-la em suas mais variadas expressões visuais, imagens e discursos. É preciso levar em conta as diversas noções de pertencimento criadas e transformadas em obras pelos artistas, estas fronteiras provenientes de vozes e imagens por vezes ainda invisíveis ou silenciadas no espelho homogêneo das nações.

A recuperação das histórias de opressão pela afirmação dos vínculos entre as tradições culturais dos africanos e afrodescendentes contrapõe-se à homogeneização requerida nos atuais dispositivos legais. É importante também indagar em que medida as imagens de África disseminam velhos rótulos e estereótipos, num cenário de novas clivagens, fronteiras e éticas transnacionais.

As imagens de África se apresentam como articulações discursivas que integram narrativas históricas, míticas e heróicas. No Brasil, esta produção vem destacando-se enquanto projeções de singularidades realizadas desde um passado colonial escravista. Em Moçambique, remetem ao contemporâneo, a uma forma de distanciar-se dos estereótipos de arte categorizada frequentemente como primitiva ou tribal. Em Portugal, estão frequentemente referidas ao processo pós-independências e à quebra dos vínculos coloniais. Em Angola, são expressão do ecletismo e da nova urbanidade em explosão. Em Buenos Aires, é expressão de uma nova e visível afro-latinidade.

Neste procedimento de ir e vir, de identificar os olhares, ouvir, sentir e tentar perceber os vários discursos, registra-se um crescente e surpreendente interesse pela África: leis que introduzem a educação e o estudo de África, novas medidas de proteção do patrimônio cultural afro, novos acordos comerciais, intercâmbios estudantis e de pesquisa científica que alteram, criam e renovam as imagens.

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É de Nação Nagô: O Maracatu como Patrimônio Imaterial Nacional

Alexandra Eliza Vieira Alencar

Jornalista, Mestra e Doutora em Antropologia pela UFSC, co-coordenadora do NUER e professora filiada do Instituto Kadila.

O presente trabalho compreende o maracatu-nação pernambucano como uma configuração cultural, nos termos de Grimson (2012), no sentido de perceber a cultura, articulada em cada contexto cultural. Assim, nosso olhar se volta para os sentidos que os maracatuzeiros atribuem à sua prática cultural.

Entendo o maracatu-nação pernambucano como uma prática cultural atravessada por várias dimensões: as organizações das nações de maracatu, também chamadas de agremiações, em diálogo com instituições do Estado-nação brasileiro; a do espetáculo, através de apresentações e no diálogo com o mercado de bens culturais e com a indústria cultural; e a dimensão da crença, através da realização de rituais religiosos junto aos terreiros de matriz africana de Pernambuco – dimensões essas que podem ser percebidas e produzidas num espaço de negociação de sentidos em que os maracatuzeiros reafirmam suas práticas culturais.

Nas apresentações que acontecem em geral nas ruas, percebo o maracatu-nação sob a forma de um cortejo real, onde há um protagonismo de reis e rainhas, príncipes, princesas, vassalos, além de outras figuras como baianas ricas, caboclos de pena, catirinas e a dama do paço, que leva em suas mãos a calunga – personagens que, na maioria das vezes, são feitos por pessoas das comunidades onde se situam as nações de maracatu.

Segundo Katarina Real (1990), pesquisadora norte-americana da arte folclórica pernambucana, a palavra “nação” é utilizada entre os pesquisadores que estudavam tal manifestação cultural, pois a palavra “maracatu” provocava confusão a respeito do seu “verdadeiro” significado, e a etimologia da palavra ainda permanece sem clarificação depois de longos debates. Além disso, há dois tipos de maracatus existentes em Pernambuco, diferentes na sua forma e conteúdo: maracatu-nação ou de baque virado e maracatu rural ou de baque solto. Assim, a autora se refere à nação de maracatu para se referir às nações africanas, ligadas à instituição da Coroação do Rei do Congo, vinculadas às Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e ao culto de São Benedito, que reuniu escravos africanos, como também negros alforriados em séculos anteriores. Tal tema sobre a origem da manifestação do maracatu e como a noção de nação foi atrelada ao termo também foi discutido pelo pesquisador Guerra-Peixe (1980), entre outros autores. Hoje, a noção de nação é muito perpassada pelas pesquisas acadêmicas já desenvolvidas sobre tal manifestação e pela maneira como os maracatuzeiros conceituam sua prática cultural. Tais conceituações são diversas e atribuem também dinamicidade ao maracatu-nação.

A calunga consiste em uma boneca negra feita de cera ou madeira que personifica eguns. Os eguns são espíritos de pessoas que já viveram, que possuíam uma relação com a religiosidade e estavam vinculados com determinada nação de maracatu. Cada nação tem uma ou às vezes até três calungas que representam eguns diferentes, com nomes diferentes. Assim, quando sai na rua, além de representar toda a ancestralidade negra que ajudou a perpetuar o maracatu, a calunga, através de seu vínculo com a religiosidade, protege a nação espiritualmente.

Há também, durante as apresentações dos Maracatus Nação, canções que são cantadas e tocadas pelos maracatuzeiros de cada nação. Tais canções, também conhecidas por toadas, são estruturadas em geral em uma quadra, com dois versos, e constituídas de uma chamada, a primeira voz, feita pelo mestre, e a resposta, segunda voz, normalmente entoada pelos demais integrantes do maracatu. Essas músicas durante o cortejo da nação são acompanhadas por uma orquestra percussiva, composta por instrumentos como alfaias, caixas, taróis, gonguê, mineiro (ganzá), e por vezes abês (xequerês) e atabaques.

As roupas, principalmente dos personagens que compõem a corte real, são compostas por vestidos com grandes armações, feitos com tecidos bordados e com muito brilho. A formação deste cortejo, em geral, vem com o estandarte da nação à frente, seguido pela corte real e a orquestra percussiva. No desfile competitivo das agremiações que ocorre durante o carnaval no centro do Recife, a orquestra percussiva vem na frente para entrar no recuo da passarela, localizado na Avenida Dantas Barreto, e depois segue a corte real ao final do desfile.

Durante o ano, as nações de maracatu ensaiam em suas comunidades para o carnaval e apresentações que realizam em eventos públicos, organizados, em geral, pelo Estado de Pernambuco ou prefeitura do Recife ou Olinda, onde ganham cachês que ajudam na continuidade de suas práticas.

Tais eventos mostram o trabalho das nações de maracatu sob a forma de um espetáculo e produto a ser consumido no mercado de bens simbólicos, mas não representam o trabalho interno das nações de colocar o maracatu na rua, a luta por reconhecimento e, sobretudo, os sentidos que esses maracatuzeiros atribuem à sua prática cultural.

A estratégia discursiva de antiguidade, expressa por sua data de fundação, utilizada pelas nações de maracatu é o que move e cria riqueza a essa prática cultural. Através deste aspecto de antiguidade, também observamos uma ideia de museu que se refere à noção de estagnação e até desativação da prática do maracatu por uma determinada comunidade. Mesmo existindo discussões atuais sobre o papel dos museus e a incidência de novas práticas museológicas que priorizam a participação das comunidades na produção de suas representações, essa relação do museu enquanto lócus de espaço de reconhecimento oficial ainda não é consenso para os maracatuzeiros das nações de maracatu de Pernambuco.

A ancestralidade também presente nesses conhecimentos liminares exerce uma valorização da experiência das pessoas no tempo e que influencia a prática cultural do maracatu no presente.

A dimensão religiosa citada nos sentidos que os maracatuzeiros produzem demonstra que o maracatu é também religião, na qual as pessoas vivem sua fé como parte da vivência no maracatu.

As questões de relações de gênero revelam que nas nações de maracatu a presença das mulheres tocando determinados instrumentos ou ocupando posições que até então não ocupavam dentro dessas nações faz com que tensões sobre tradicionalidade se perpetuem, mas também produzam novos sentidos a essa prática cultural, possibilitando seu dinamismo no tempo.

Assim, o maracatu segue coroado, através da trajetória dos maracatuzeiros que criam novos sentidos para sua prática cultural, a partir da memória dos seus antepassados, do pertencimento a essa comunidade cultural e da dinamicidade da sua experiência no tempo. Essas enunciações dos maracatuzeiros sobre sua história fornecem uma reflexão crítica sobre a produção do conhecimento, externando cada vez mais ao mundo suas formas de agir e pensar.

Notas:

[1] Para Silva (1994), assim como para outros autores, o maracatu tem suas origens nas coroações dos reis e rainhas negros, patrocinados pelas irmandades de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, em várias regiões do Brasil, que existiram desde o século XVI no país, promovidas pela administração colonial portuguesa (SILVA apud REIS, 1996). Contudo, há outros estudos, como o de Lima (2005), nos quais a relação linear entre os Maracatus-Nação e os Reis do Congo enquanto origem cai por terra quando observamos que ambos foram contemporâneos durante muitos anos no século XIX. Independente da relação das nações de maracatu com as coroações dos Reis do Congo, o formato de cortejo real, onde há um protagonismo dos moradores das comunidades onde se localizam as nações, permanece até os dias atuais.

[2] Hoje, já existem pessoas que não são das comunidades onde se encontram as nações de maracatu, mas participam das nações, ocupando esses vários papéis que existem dentro do cortejo.

[3] De acordo com Guerra-Peixe (1980), Mário de Andrade propõe que o termo “maracatu” derivava de “maracá”, instrumento ameríndio, e “catu”, que quer dizer “bonito”, o que resultaria na designação de “dança bonita”. Já Gonçalves Fernandes afirma que a palavra “maracatu” vem da expressão “muracatucá” ou “maracatucá”, que significa “vamos debandar”. O próprio Guerra-Peixe argumenta que o vocábulo “maracatu” não deriva de expressões ameríndias, mas nomeava uma forma particular de batuque sob seu aspecto precisamente rítmico. “Alargando, porém, o sentido, maracatu passou a designar o atual cortejo recifense – que ainda hoje conserva o tratamento de nação.” (GUERRA-PEIXE, 1980, p. 31).

[4] A calunga foi trazida de Angola pelos escravos para o Nordeste brasileiro, fazendo parte do cortejo dos Maracatus Nação (GUERRA-PEIXE, 1980). O termo “calunga” deriva das palavras “lunga” ou “malunga”, que é plural em quibundo da palavra “lunga”, que significa “pedaço de madeira símbolo de autoridade Mbundu”, associado em particular aos bapende. Acreditava-se que viera do mar e tinha estreita ligação com a água de lagoas e rios. Disponível em: http://www.multiculturas.com/angolanos/alberto_pinto_kimb_port_vocab.htm. Na cosmologia das religiões de matriz africana, presente nos terreiros do xangô pernambucano aos quais tive acesso, a calunga grande refere-se ao mar, ao oceano por onde os escravos acreditavam que iriam quando entravam nos barcos, e essa relação tem a ver com a figura da boneca, uma grande mulher negra que se movimenta no meio do cortejo, abrangendo tudo. Também dentro dos terreiros do xangô pernambucano, a calunga pequena significa o cemitério, lugar onde estão os que já morreram, e tal relação com a figura da boneca se confirma à medida que esta, nas nações de maracatu, representa os espíritos dos antepassados que já morreram.

 

Referências Bibliográficas:

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